Zulkras

Filho de um fidalgo com uma camareira, foi o que lhe disseram. Um bastado às vésperas do casamento do primogênito era um corte mais profundo do que a família do seu pai poderia aguentar. O teatro das marionetes em que vivia a nobreza do reino de Illusia era um jogo perigoso e os bonecos sempre tinham uma tesoura lhes espreitando as cordas.

Detrás das cortinas do espetáculo, sua progenitora descartou-o pouco após o parto. A figura pequena e frágil lhe lembrava a cada instante do amor que lhe fora negado. Pior, do amor que talvez nunca tenha existido. Lembrava-lhe dos sonhos juvenis de uma mal nascida que, dentre os afazeres da nobre mansão, tinha dedicado tempo demais admirando a beleza altiva de seu jovem senhor. Via rastros da mesma beleza no mal-nascido.

O abandono não fora sequer sentido. Refúgio dos Corações Desamparados, apesar de sombrio e taciturno, era acolhedor. Austero e sombrio, as paredes gastas de pedra e janelas estreitas que deixavam apenas a luz fraca e difusa do sol entrar foram a sua morada desde que se lembra. Perdida nos arredores de uma pequena vila no norte da ilha, Zulkras cresceu nos quartos úmidos, hora fugindo dos grandalhões no pátio e hora se esgueirando pelos corredores até a cozinha, agachado sob os retratos desbotados de benfeitores que pareciam olhar silenciosamente para baixo, como se zelando pelo bem-estar da criança.

As freiras sabiam de suas escapadelas até o armazém do refeitório e nunca fora punido de fato. A maioria delas era complacente com as brincadeiras do garoto e não era comum que ele voltasse com os bolsos cheios de tiras de carne seca e pão sovado para dividir com as outras crianças.

A infância de Zulkras foi feliz. Tirando a estranheza do nome, razão pela qual as crianças gozavam dele, nunca foi preterido por seus pares ou instrutores. Do contrário, despontou como líder das crianças, seja nas brincadeiras ou para reivindicar por mais carneiro no guisado.

Despontou ainda cedo nos treinamentos militares, destacando-se nas lutas desarmadas. A facilidade com que aprendia e aplicava lhe compraram a saída dali logo no início da puberdade, deixando o aconchego materno do Refúgio dos Corações Desamparados pelo frio quartel da guarda da cidade. Foi quando teve o primeiro contato com a sua história de origem. Seu nome era uma piada, um desencontro aleatório de letras escolhidas ao acaso para lhe dizer o que qualquer um sabia: não tinha origem, não tinha nome, não tinha uma identidade. Nada a não ser Zulkras, uma afronta aos padrões rigorosos da sociedade aristocrática, nascido ilegítimo de um senhor qualquer, com esse estigma pairando sobre ele como uma sombra constante, um lembrete cruel do amor proibido que lhe deu origem.

Não deixava que essas coisas lhe atormentassem. Era apegado ao seu dever. Reconhecido entre seus pares por apanhar mais bandidos do que qualquer novato jamais tivera feito, havia uma em especial que sempre lhe escapava dos dedos: Meera. A gatuna era escorregadia feito uma enguia, deixando-o sempre a ver navios enquanto escapulia com comida, moedas, tecido ou o que quer que fosse que sua mente de ladra lhe instigasse a pungar no dia.

Apesar de insistir em sua captura, jamais obtivera êxito. Os outros guardas sequer tentavam, pois a garota era conhecida por castigar os que arriscavam, deixando-lhes lembranças profundas com a adaga. Em meio aos encontros furtivos e perseguições em vielas escuras da cidade, uma conexão silenciosa começou a se formar entre eles. Os olhares de soslaio e as conversas roubadas revelaram camadas ocultas de seus corações, despertando um sentimento que transcendia as barreiras sociais das funções que cada um desempenhava.

Dentre os encontros que procederam, nenhum dos dois jamais percebeu que seria notado. Sob a noite escura numa cabana qualquer no extremo norte da ilha, suas vozes se entrelaçavam em uma dança delicada de confissões e desejos reprimidos.

Enquanto Meera e Zulkras desfrutavam de um momento de relativa tranquilidade em uma conversa íntima, sem o conhecimento deles, alguns guardas os seguiam furtivamente para descobrir o paradeiro de Meera. Ao encontrar o esconderijo deles, cercaram-nos e capturaram.

Furioso com a resistência de Meera e determinado a extrair informações sobre seus aliados, um dos guardas não hesitou em usar métodos brutais. Em um ato de crueldade, ele fez uma cicatriz no olho de Meera, deixando uma marca permanente em seu rosto.

Enfurecido com a dor de Meera e cego pela raiva, Zulkras, que estava algemado e incapaz de intervir, finalmente conseguiu se libertar. Com uma fúria indomável, ele se lançou contra o os guardas, decidido a vingar o sofrimento de Meera.

Em um confronto rápido, porém sangrento, Zulkras lutou com ferocidade contra o seu companheiro, que não esperava encontrar tamanha resistência. Em um momento de desespero e determinação, Zulkras conseguiu sobrepujar seus agressores e, com um golpe certeiro, produziu a mesma cicatriz espelhada em sua face, como um símbolo de justiça e vingança. No meio disto, Meera também se libertou e rapidamente sobrepujou os restantes que pouco fizeram além de tentar resistir por fração de segundo.

Ao se libertarem, Meera e Zulkras perceberam que a dor compartilhada e a coragem demonstrada um pelo outro durante a provação os uniram de uma maneira mais profunda do que nunca. Zulkras, ao ver a coragem de Meera diante da adversidade, sentiu-se ainda mais atraído por ela, admirando sua força e determinação. E Meera, ao testemunhar a fúria protetora de Zulkras, sentiu-se profundamente tocada por sua devoção e lealdade. A cicatriz em seus rostos agora não apenas representava a dor que suportaram, mas também a força de seu vínculo, que resistiu às provações mais cruéis.

Em dado momento, uniram-se ao Exército Revolucionário através de um antigo contato de Meera, ocasião na qual tiveram contato com os ideais da causa e a história da ilha. Apesar disto, mantém as aparências como soldado da guarda real e, graças às suas habilidades, tem sido cotado para a guarda do Parlamento ou até mesmo da rainha.