Claire Allim Rac

Sendo sincera, nem eu sei como tudo isso começou. Minha memória mais antiga foi ser encontrada por uma trupe tão única! E… bizarra. Antes que soubesse dizer meu próprio nome, já haviam me ensinado a fazer malabares. Eu adorava a vida no circo! Desde pequena me colocaram como ajudante em todas as funções possíveis: Seja para montar os palcos, preparar nossos integrantes ou até mesmo participar das apresentações, mas por ser tão pequena o último raramente acontecia. Naqueles momentos ingênuos, eu fui feliz, mas havia algo de sinistro por trás de tudo: Um homem mal, sua mera presença arrepiava todinha. Seu nome era Clayton. Ele era o dono de tudo, e quando digo tudo, é por que até nós, membros da equipe, éramos seus pertences. Escravidão da pior índole. Se tivéssemos o infortúnio de cometer um erro, por menor que fosse, éramos disciplinados com chibatadas e privação de sono e comida . Isso incluía até a mim, uma pequena criança na época. Mas notava que ele era mais brando comigo, dizia que havia um valor especial em mim, que um espécime raro como eu não seria encontrado tão facilmente pelo oceano. Na época me soou fantástico: Quem dera eu tivesse percebido naquela idade o quão mal aquele homem realmente era.

Durante a infância eu notei meu corpo mudando. Dentes afiando, orelhas pontiagudas, a pele adquirindo uma palidez indistinguível. Não entendia o que era aquilo, mas Clayton parecia feliz. Alguns membros da minha família circense começaram a se distanciar de mim, mas não conseguia entender, será que as mudanças na minha aparência eram tão assustadoras?

Por coincidência, um dos membros mais distantes e calados, um homem-peixe chamado Ben, começou a interagir mais comigo. Sempre me pareceu frio, mas foi cuidando de mim que um lado inesperado apareceu: Como aquele homem era gentil! Me deixava comer dos restos que sobravam, conseguia me animar nos momentos de tristeza e, principalmente me incentivou a ser uma artista, por mais que odiasse aquele ambiente - com toda razão - Ben dizia que mesmo estando velho, não se importaria de arriscar uma fuga. O tritão sempre disse que o mar era nosso lugar… E hoje percebo que estava certo.

Ben tentava me distrair daquela vida sempre que possível. Era um velhinho muito culto: Clayton não gostava que tivéssemos contato com o mundo exterior, mas meu guardião tritão sempre arranjava formas de conseguir livros, e que fonte de informação maravilhosa eles foram! Ele leu vários desses contos fantásticos que me deixavam empolgada com o mundo lá fora, não faltavam exemplos de heróis valentes que ajudavam os mais fracos… Seria um sonho distante pensar que um desses poderia aparecer e nos tirar dali?

Entre vários contos, haviam seres que me fascinaram mais que outros: Os vampiros. Eles raramente eram os heróis das histórias, mas ao ouvir suas descrições, seus feitos de coragem, eu tive uma epifania - por mais que não fosse muito inteligente - Eu só podia ser uma deles! Isso explicava as mudanças que passei e os receios de alguns comigo. Ben não gostou nada disso e sempre me repreendia, até chegar ao ponto de dizer que eu era como ele, ou ao menos parte de mim seria de uma mulher-peixe. Eu não consegui conter a risada, eu era boa em nadar, nunca precisei nem mesmo sair d'água para recuperar o fôlego! Mas isso só provava como a minha condição era especial, não era uma mera meia-vampira, mas uma híbrida de um vampiro do mar! Se havia algo que eu precisava fazer, assim como os contos diziam, era me alimentar de sangue. Quem sabe assim eu conseguiria ficar poderosa o suficiente para me transformar em morcegos, voar, e até controlar a mente das pessoas. Se conseguisse convencer o malvado dono do circo para assinar nossa liberdade, a história terminaria com um final feliz!

O tempo passou e junto veio a maturidade, mas Ben nunca deixou de trazer histórias pra mim, o que só me deixava mais intrigada com os variados rumores de um bravo mundo fora daquela prisão. Os contos me inspiravam a não se conformar com os grilhões do circo, assim como os vampiros e os heróis, eu tinha que reagir ao mal de algum jeito. E assim eu o fiz: Em cada ato que performei perante o circo, arranjava uma forma de alfinetar Clayton. Acrobacias, piadas, uma palhaça irreverente que deixava nosso dono louco! Mas ele sabia do meu valor: Não podia descartar uma meia-vampira como os demais escravos. Tive esperanças de que alguém notaria os maus tratos contidos nas minhas piadas - até notei algumas presenças curiosas começando a frequentar nossas apresentações, independente de qual ilha estivéssemos - mas infelizmente a ajuda não chegou. Ao menos não antes de Clayton perder a paciência comigo.

Em uma das noites após a apresentação Clayton veio atrás de mim exigindo que minhas indiretas cessassem, mas me recusei. Aproveitei para deixar clara toda minha insatisfação e incentivei o resto do circo a fazer o mesmo, mas ninguém se mobilizou. Clayton me atacou e travamos uma luta tensa, nunca presenciei o circo num silêncio tão marcante como naquela noite. Eu acertei  uns bons golpes no infeliz, mas infelizmente ele se provou mais forte. No momento em que pensei ser meu fim, Ben apareceu. Se ocupou de segurar Clayton tempo o bastante para que eu conseguisse fugir dali, minha última lembrança foi Ben no chão marcado por chibatadas. Doeu muito deixar meu pai morrer, mas eu sabia que ele, acima até mesmo de mim, gostaria da minha liberdade. Não pude deixar seu sacrifício ser em vão.

Com muitos machucados e lágrimas inundando os olhos, escapei do circo, não, o nome certo para aquilo era prisão, não merecia um nome que era sinônimo de alegria e diversão. A chuva pesada daquela noite ajudava a ocultar minha presença e, depois de horas sob o frio e a tempestade, faces que eu vi espreitando na plateia do circo me encontraram: eles se revelaram como membros do exército revolucionários! Eles me salvaram e foram atrás de Clayton - mas o circo já havia se movido, como de costume. - Por mais que pedisse para encontrarem a minha família, não haviam pistas por perto, então preferiram me salvar antes que minha situação ficasse pior.

Alguns meses se passaram, as dores de ser separada da família estavam se curando - mas a sede de justiça continuava presente. - Nesse meio tempo aprendi a canalizar minha raiva através de um tipo de música encantadora: O Rock! Não só isso, mas me juntei ao grupo revolucionário. Ao saber que o governo era conivente com essa situação, que raças inteiras eram escravizadas como animais, poxa, como aconteceu comigo, não poderia deixar que isso continuasse impune! E eu sei que é questão de tempo até encontrar o circo de novo. Clayton vai ser punido, minha família será salva e, com sorte, Ben ainda estará vivo.