"Sirarossa é uma ilha bela e próspera, com uma criminalidade de praticamente zero."Não era muito difícil de achar manchetes nos jornais que diziam coisas desse tipo. Mas por mais que possa parecer desse jeito por fora, a realidade era completamente diferente para as pessoas que conheciam a ilha de verdade. Sirarossa é rica e urbanizada, mas a violência e a desigualdade não são apenas uma parte obscura de seu passado. Matt é a prova viva disso: quando ele ainda era pequeno demais pra se lembrar bem de seus nomes ou rostos, os seus pais desapareceram de forma misteriosa - o que queria dizer que provavelmente tinha sido graças a algum problema com uma das famílias mafiosas da ilha. Assim, o menino cresceu nas ruas, tendo que aprender a se virar desde cedo e fazendo o possível pra sobreviver.
Uma coisa é certa, claro: o garoto não teria conseguido sozinho. Felizmente, ele foi acolhido por outras crianças e até alguns mais velhos que também viviam nas ruas da ilha, e que foram a primeira coisa próxima de uma família que Matt teve. O dia a dia não era fácil, mas era divertido: fosse se juntando às outras crianças para roubar comida das padarias e restaurantes, passando a tarde observando os navios que iam e vinham no porto ou simplesmente se divertindo pelas ruas da ilha, aqueles dias nunca eram chatos ou entediantes. Isso não significava que era tudo maravilhoso, é claro, já que não eram poucas as vezes em que eles eram pegos e apanhavam por roubar alguma coisa, ou em que algum conhecido se envolvia com o submundo e acabava morrendo. A violência e o crime faziam parte da sua rotina também, e ele se viu cara a cara com o perigo muitas vezes.
Mas nada disso abalava o garoto. Talvez fosse uma questão de espírito, talvez de força de vontade, mas alguma coisa dentro dele se recusava a seguir daquele jeito pra sempre - seus olhos brilhavam, vendo as luzes da cidade à noite, enquanto ele imaginava como seria ter uma cama quentinha pra dormir todos os dias. Foi mais ou menos nessa época, quando tinha uns 6 ou 7 anos, que nasceu a sua paixão por máquinas, armas e tecnologia como um todo - e foi aí também que ele descobriu seu talento natural pra aprender coisas novas. Só alguns dias observando os ferreiros e mecânicos da cidade foram o suficiente pra que ele começasse a criar as suas próprias coisas, usando o que encontrava por aí - desde brinquedos e coisas sem utilidade até armas improvisadas para se defender se entrasse numa enrascada.
O que ele não sabia ainda é que, em breve, chegaria um momento que mudaria a sua vida para sempre. Mas antes de falarmos disso, temos que mudar um pouquinho de lugar e contar um pedaço da história de uma outra pessoa - de um homem chamado Nicolò Martini.
. . .
-
...tem mesmo certeza disso, senhor Nicolò? - o mais jovem perguntou, sem muita esperança na voz. -
Quantas vezes você vai me perguntar antes de ficar satisfeito, rapaz? Eu já disse...! - o homem mais velho parou para tossir, soltando a fumaça e apagando o cigarro na amurada do navio. -
Eu já disse que estou me aposentando. Tem muita coisa que eu quero fazer antes de bater as botas, Dante, e trabalhar na máfia pelo resto da minha vida não é uma delas. Você já é um homem feito, vai saber se virar sem mim. - ele sorriu, em parte melancólico por deixar pra trás o que tinha sido a sua vida por tanto tempo, em parte zombando de seu discípulo, que parecia estar segurando as lágrimas. Mas Nicolò já tinha se decidido, e não pretendia voltar atrás na sua palavra. Se despedindo de Dante, ele caminhou navio adentro, pronto pra fazer a viagem de volta à sua terra natal, uma ilha no West Blue chamada Sirarossa.
Nicolò Martini era um homem gentil e sagaz. Ele fez parte da máfia de uma certa ilha da Grand Line por quase 30 anos, a maior parte desse tempo trabalhando como Capo, e ficou conhecido por ser mais "bonzinho" do que a maioria - ele relevava alguns atrasos nos pagamentos, tinha um fraco por crianças e animais, e geralmente pegava leve nas punições dos subordinados se não fosse por um motivo grave. Mas ele também era conhecido por ser mais firme que qualquer um quando a situação pedia, não hesitando em tirar a vida dos inimigos com sua habilidade incomparável como atirador no auge da juventude. Mas com a idade chegando, ele resolveu que não podia simplesmente passar o resto da sua vida ali, na mesma rotina de sempre. E foi assim que, juntando as suas economias, ele conversou com o seu chefe e "se aposentou" - sob a condição de que nunca mais poderia voltar pra mafia - passando a ser essencialmente só mais um homem comum. Ele recomendou o seu aprendiz, Dante, para assumir o seu lugar, apesar de sua idade, e viajou de volta para o West Blue.
O plano de Nicolò era simples: um apaixonado por boa comida e bebida, ele comprou um pequeno navio-café, e pretendia viver disso enquanto viajava por aí, aproveitando o resto da sua vida. O navio já tinha sido preparado e estava no porto da ilha de Sirarossa, faltando apenas uns últimos carregamentos para que estivesse pronto para começar a operar. Mas numa certa noite, enquanto ele observava o resto do porto da amurada de seu navio, viu um vulto se mexendo perto da sombra de algumas embarcações. Descendo pra olhar mais de perto, ele viu que se tratava, na verdade, de uma criança: um garoto de cabelos dourados e roupas surradas, e que não parecia estar nem um pouco bem. Fome, sede, frio...o que quer que tivesse acontecido com ele, Nicolò não tinha dúvidas de que o menino morreria se o deixasse ali...e ele simplesmente não conseguia abandonar uma criança indefesa assim.
. . .
-
Aqui, tome pra se aquecer um pouco. Eu vou preparar algo pra você comer. - Nicolò entregou ao menino uma caneca com café. Matt fitou a bebida com um olhar desfocado, sentindo o calor da mesma pela porcelana, e tomou um gole. -
...bléh! É muito amargo... - ele olhou de cara feia pro homem que tinha o trazido pra dentro do navio. Ali, ao menos, não estava fazendo frio como lá fora, mas ele com certeza não tinha gostado da bebida. O homem olhou pra ele e suspirou, pensando que ao menos ele estava bem o suficiente pra reclamar. -
Sigh...fala sério. Crianças não sabem nem ao menos apreciar um bom café hoje em dia? - ele então voltou para a cozinha, deixando o garoto sozinho, sentado perto do balcão. Matt olhou em volta, ainda sem saber direito o que estava acontecendo, mas com um fascínio no olhar. Ele nunca tinha estado dentro de um lugar assim antes. O ambiente era aconchegante, e uma música agradável vinha de algum lugar que ele não sabia identificar. Depois de um tempo, começou a sentir um bom cheiro vindo lá de dentro, como aqueles que sentia quando passava perto dos restaurantes da cidade - e logo Nicolò voltou, trazendo um prato de comida e outra caneca.
A bebida dessa vez tinha uma cor parecida com a outra e também era quente, mas cheirava diferente...cheirava bem. -
Chocolate quente, o que acha? Tenho certeza de que faz mais o tipo de um moleque que nem você. E isso aqui no prato é um frico, coma enquanto está quente. - o homem disse, soando bastante orgulhoso. Matt respirou fundo antes de provar a bebida dessa vez, mas quando tentou...foi amor ao primeiro gole. -
...! Isso é...isso é muito bom! - ele olhou para Nicolò, radiante. Animado de novo, ele logo sentiu o seu estômago roncar, partindo pra cima da comida como se não tivesse comido em dias - o que não estava exatamente errado - e aproveitando cada pedaço. O homem sorriu, satisfeito, e sentou-se para tomar seu café enquanto assistia o menino aproveitar a comida e bebida. Não era exatamente o que ele esperava de um primeiro cliente, mas só servia pra confirmar que tinha tomado a decisão certa. -
Qual o seu nome, garoto? - ele perguntou. O menino pareceu pensar um pouco pra responder, olhando para ele e sorrindo: -
Matteo, mas todo mundo me chama de Matt.Desse dia em diante, Matt começou a voltar a visitar o navio de Nicolò todos os dias, até dormindo lá dentro às vezes, durante as semanas em que ele ainda estava aprontando as últimas coisas. Na maior parte do tempo, o homem simplesmente tomava o seu café e dava algo de comer ao garoto - sem esquecer do seu adorado chocolate quente - enquanto puxava um pouquinho de conversa. Vez após vez, eles fizeram companhia um ao outro, e foram se conhecendo melhor: Matt falava do seu dia a dia nas ruas, das confusões em que se metia e das coisas que aprendia, enquanto Nicolò o ensinava um pouquinho sobre as comidas e bebidas que fazia, e sobre como pretendia viajar por aí servindo outras pessoas naquele navio. Na semana de abertura do
Café Martini, ainda em Sirarossa, Matt chegou até a ajudar Nicolò a receber a clientela e levar os pedidos até as mesas. Não tinha como negar que os dois tinham se tornado próximos - quase como pai e filho, a essa altura. E foi por isso que, um dia antes de deixar a ilha para começar as suas viagens, Nicolò convidou o garoto a ir com ele.
Pra Matt, não foi uma escolha muito difícil. Ele sempre tinha sonhado em mudar de vida, e nunca tinha estado tão feliz quanto esteve nos dias em que passou visitando o navio-café. E assim, quando tinha mais ou menos onze anos, o garoto foi adotado por Nicolò e passou a carregar também o seu sobrenome. Matteo Martini. Ele gostava de como soava.
. . .
Nos anos que se passaram, Matt viajou por todos os quatro Blues, visitando muitas das ilhas, mesmo que nem sequer chegasse a sair do navio na maioria das vezes. Ele aprendeu muito com Nicolò, o que moldou desde o seu jeito de pensar e agir até habilidades como manusear uma arma ou fazer boas bebidas. Esse tempo também lhe deu muitas oportunidades de aprofundar os seus conhecimentos, se tornando um ferreiro verdadeiramente bom no que fazia. Ele conheceu muitas pessoas, com alguns clientes regulares que sempre visitavam de tempos em tempos: como o Dante, um antigo aprendiz de Nicolò, ou a Senhorita Blake, que os rumores diziam já ter tido um caso com o homem no passado. Servindo os clientes, ouvindo histórias, e até lidando com o ocasional ataque de piratas ou bandidos em alto mar, esses anos foram sem dúvidas os mais incríveis da vida do rapaz. Quando tinha uns dezesseis anos, eles visitaram uma ilha onde encontraram duas garotinhas - Dawn e Eve - que eram tratadas como aberrações pelas outras pessoas por conta de sua descendência - uma tinha pequenas asas nas costas, e a outra, um terceiro olho abaixo da franja. Matt convenceu Nicolò a adotá-las também, e ainda que tenha levado um tempo pra elas se acostumarem, elas acabaram se tornando parte da família também, vendo Matt como um irmão mais velho.
Em tudo isso, só havia um problema. Nicolò tinha uma doença degenerativa que sempre lhe causou algumas dores de cabeça ao longo da vida - mas que com os seus remédios, não era tão difícil de lidar. A tosse constante raramente passava disso nos primeiros anos, mas de algum tempo pra cá, a situação dele foi ficando pior a cada ano que passava - e aí surgiram as febres, as dores, a fraqueza e tudo mais. Ele precisava de cada vez mais remédios pra normalizar a situação, e eventualmente chegou a um ponto em que nem eles davam conta do recado. Matt, Dawn e Eve tinham que alternar entre ajudar no restaurante e ficar de olho nele, pra ter certeza de que estava tudo bem, sempre torcendo para que ele ficasse melhor...mas no fundo, todos os três sabiam que a tendência era que aquilo só piorasse.
E foi aí que, numa noite de garoa, com o navio ainda em alto mar, Dante fez uma visita quando todo mundo menos Matt já tinha ido dormir. Ele chamou o rapaz pro lado de fora, oferecendo um guarda-chuva, e os dois ficaram um tempo só observando o mar e a chuva. Dante acendeu um cigarro - que por algum milagre não apagou - e resolveu quebrar o silêncio. -
Pela sua cara, a situação deve estar tão ruim quanto eu pensei. - ele falou, sem tirar os olhos do mar. Matt engoliu em seco, sem saber o que dizer a princípio. -
Os remédios não estão servindo mais, e ele quase não tem aberto o café ultimamente. Eu não quero esperar pelo pior, mas... - no fim, não havia nada que ele pudesse fazer. A sensação de impotência era maior do que a de sua época morando nas ruas. Depois de mais um momento de silêncio, Dante o olhou nos olhos, com seriedade: -
E se eu te disser que tem um jeito de ajudá-lo, Matt? - ele disse -
E se eu te disser que a organização entrou em contato com um médico que pode curá-lo? - Matt o olhou com incredulidade, sem saber ao certo se aquilo deveria ser algum tipo de pegadinha ou não. Mas ele conhecia Dante, e sabia que ele se preocupava com Nicolò tanto quanto qualquer um ali. -
E o que eu preciso fazer? - ele respondeu de imediato. Dante sorriu. -
Você entende rápido. O problema aqui é o valor do tratamento...é bem alto. Eu pretendo ajudar, e tenho certeza de que o Nicolò ainda tem alguma coisa guardada, mas vou precisar que você ajude também. Pra começar...uns vinte e cinco milhões. - Matt arregalou os olhos ao ouvir o valor. Não era fácil conseguir tanto dinheiro assim. -
Claro, não temos tempo pra esperar você conseguir tudo isso...então eu quero fazer um acordo com você. Esse dinheiro vai ser emprestado pela organização, e daí pra frente, Matt, a responsabilidade de pagar é sua. Eu posso cuidar do Nicolò e das garotas nesse meio tempo, arrumar um lugar pra morarem onde eu possa ficar de olho neles...mas você vai ter que se virar sozinho. Consegue fazer isso? - ele estendeu a mão.
E Matt, sem parar pra pensar duas vezes, a apertou, com um brilho de determinação renovada no olhar. Ele já tinha passado muito tempo sem saber o que fazer, certo de que só poderia esperar até que o pior viesse...mas se agora ele tinha uma chance de ajudar o seu pai e a sua família, ele ia agarrá-la com todas as forças e não largaria por nada nesse mundo. Depois disso, eles foram para dentro e fecharam o contrato, e Dante recomendou ao rapaz o caminho dos caçadores de recompensas - se ele quisesse fazer dinheiro rápido, esse provavelmente era o melhor jeito. E assim, se despedindo de seu pai e suas irmãs, que Dante levaria para a Grand Line, Matt partiu para a ilha mais próxima - Stevelty - com um objetivo claro em mente.
Salvar a sua família.