Sentado no pequeno banquinho ao lado da cama, a cabeça repousada sobre o colchão, Gar cochilava tranquilamente quando deveria estar de vigília. Isso acontecia com frequência, já que o tédio o impedia de se manter alerta como inferência de seu metabolismo agitado; se antes a sua energia era tradicionalmente gasta brincando e correndo pela vizinhança, agora Gar passava a maior parte do tempo escondido dentro de casa. Ele não fora obrigado a isso, no entanto.
Gar decidiu viver em função da garota por vontade própria. Passava seus dias ajudando a sua mãe com os cuidados basilares que a moça exigia, esforçando-se com diligência sempre que precisava. Não sabia quem era ela, mas isso pouco importava. A bela adormecida era, afinal, uma menina-animal.
Gar nunca antes havia conhecido outros como ele. Sua mãe, por mais que se destoasse facilmente de outras pessoas graças aos seus volumosos e brilhantes cabelos de fogo, ainda era uma humana comum, sem orelhas, rabos e pelos. Ela lhe explicou que o havia encontrado quando ele ainda era muito bebê, escondido dentro das raízes de uma imensa árvore que crescia perto de onde moravam. Ninguém nunca voltou para buscá-lo, e por isso sua mãe o criou.
Ele acreditava ser único – uma criatura singular criada pela vontade divina –, mas então surgiu a menina, vinda de lugar nenhum, e Gar foi surpreendido com a imensa semelhança entre eles. Afeiçoou-se imediatamente à desconhecida, confortado pela ideia de se sentir menos único, menos incomum... de já não ser mais o estranho. A menina, que já dormia há várias luas de forma ininterrupta, havia se tornado o seu elo com o sentimento de pertencimento.
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Ahn? — Ele acordou de repente, sentindo os movimentos suaves pela cama. Com as bilocas da face arregaladas, ele assistia, incrédulo, a jovem se mexer pela primeira vez, e sorriu largamente quando os olhos da menina finalmente o focaram. —
Você finalmente acordou! — Disse por fim, eufórico. Ele se levantou num sobressalto, quase não se contendo de alegria.
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Mamãe! Ela acordou!❊
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Não entendo por que não posso ir com ela. — Resmungou, contrariado, enquanto auxiliava a mãe com o manuseio do tear. Observava carrancudamente enquanto Fran trançava as linhas de algodão habilmente, tecendo um novo tecido com a ligeireza de quem dominava a própria profissão. A mulher sorriu, compreensiva, enquanto se preparava para elencar, pela décima vez, todas as razões que o impediam de despontar para o mar com Mika.
—
Você é muito novo para velejar, e ainda não é capaz de se proteger adequadamente caso tentem fazer algo de ruim para vocês. Não se esqueça: você não é como os outros; têm essas orelhas adoráveis que podem despertar o interesse de pessoas ruins. O que eu faria se você acabasse sendo tirado de mim para sempre? — Explicou pacientemente, mesmo ciente de que sua voz doce não alcançaria a razão da menino.
Gar se irritou. Não gostava de ser tratado como criança. Ele já era suficientemente crescido para se virar, sendo capaz até mesmo de ir sozinho à cidade comprar comida quando lhe era solicitado, mas aparentemente ninguém enxergava a sua independência. Nem mesmo Mika, que sempre o dizia o quanto ele era esperto e inteligente, enxergava a sua autossuficiência.
Por causa delas, ele era obrigado a ficar naquela ilha enquanto a sua irmã desbravaria o mundo. Precisou assistir passivamente Mika arrumar seus pertences e partir, deixando-o para trás. Sentiu tristeza, saudade, raiva. Derramou lágrimas, esperneou, machucou-se chutando uma árvore. Nada, no entanto, as fizeram mudar de ideia, e pouco depois havia visto a pessoa mais importante da sua vida abandoná-lo, sem sequer olhar para trás.
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Era tarde da noite quando ele pulou a janela quebrada de sua casa. Seus passos naturalmente silenciosos o privavam de barulhos indesejados, o que assegurou a Fran uma noite tranquila, sem saber o que seu filho pretendia. “Com sorte, ela só descobrirá amanhã de manhã,” ponderou em pensamento enquanto caminhava em direção ao porto.
No dia anterior, ele descobriu que um barco pesqueiro sairia da ilha de madrugada, e ali Gar enxergou uma imensa oportunidade. Havia se passado alguns bons anos desde que Mika partira para o mar, e embora vez ou outra chegassem aos ouvidos de Gar notícias suas, o rapaz as considerava demasiado insuficientes. Estava com saudade, isso ele nem Fran poderiam negar. Ninguém poderia condená-lo por tomar aquela decisão.
Tentou afastar a culpa enquanto percorria o trajeto em busca do seu destino, sentindo seu coração apertar. No fundo, ele sabia que Fran ficaria desolada e preocupada, mas Gar estava determinado a ir atrás de sua irmã. “Vou mandar notícias toda semana. Sem falta!” convenceu-se em pensamento. Além do mais, se tudo ocorresse bem, em menos de dois meses ele encontraria Mika, e juntos poderiam voltar para visitar a sua mãe, quiçá até poderiam levá-la para o mar da próxima vez.
“Poderemos viver todos juntos velejando para sempre”, devaneou, a mente pueril, pouco antes de encontrar o barco com seu nariz desenvolvido. O cheiro forte de peixe fez seu estômago revirar, mas ele não desistiu. Se esgueirou para dentro do convés, e agilmente se escondeu embaixo de uma das grossas lonas encardidas, em meio a várias caixas de papelão.
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Ladrão! Ladrão! — Gritava o padeiro enfurecido. Sua imensa pança pareceu despontar na área externa antes mesmo de sua voz esganiçada, e Gar se virou a tempo de vê-lo derrubar uma das cadeiras dispostas em frente ao seu estabelecimento. O rapaz lhe mostrou a língua, atrevido, e saiu em disparada pelas vielas da cidade. —
O mink me roubou! Não deixem esse maldito moleque fugir. — Ouviu o homem ainda dizer, mesmo que, a essa altura, já estivesse demasiado longe para ser pego por alguém.
A audição afiada era ambiguamente uma dádiva e uma maldição. Ser capaz de ouvir a tudo e a todos o havia salvado de várias enrascadas ao longo dos anos vivendo nas ruas, mas também o obrigou a lidar com a maldade e o preconceito desde muito cedo. Xingavam-no de todas as formas imagináveis, mas era curioso como a maior parte das ofensas tinham como premissa a sua raça maldita; uma raça que, há pouco tempo, ele sequer sabia que existia.
Descobriu-se um mink em meio ao ódio da humanidade, mas nem mesmo a xenofobia sequer o fazia cogitar a possibilidade de voltar para casa. Não sem antes encontrar Mika, dizia para si mesmo, pois, ainda que a missão estivesse demorando mais do que ele imaginara, ele sentia que estava cada vez mais próximo da irmã.
Ao longo dos anos, Gar perseguiu boatos e trilhas frias, mas algo o impedia de perder as esperanças. Enquanto isso, no entanto, ele precisava se virar como podia, e como inferência se tornou um excelente trombadinha. Batedor de carteiras era como ele preferia ser chamado, mas as suas vítimas sempre encontravam epítetos cada vez mais ofensivos para descrevê-lo.
Ele parou de correr quando se sentiu seguro. No telhado de um imenso casarão, ele se sentou, pernas cruzadas, e comeu o pão furtado de uma única vez. “Nem é tão bom. Não precisava se irritar tanto por causa disso”, ponderou, mastigando pausadamente enquanto observava o movimento nas vias abaixo de si. Sorriu quando viu o pandeiro passar por uma delas às pressas, em seu encalço pelo menos mais três homens.
—
É uma mink felina. Não, não tenho detalhes sobre a sua vida pregressa, mas fui informado que ela se chama Formika. — Falou alguém inesperadamente, e Gar arregalou os olhos ao reconhecer o nome dito. Percebeu que a voz vinha de uma janela abaixo de si, e esgueirou-se sorrateiramente por cima dela. De cabeça para baixo, ele espiou o interior do casarão e deparou-se com um homem numa chamada, em suas mãos alguns papéis cujo conteúdo Gar não conseguiu ler.
—
Parece que se tornou agente há pouco tempo, por isso ainda não tem muitas realizações, mas mesmo assim ela vai te servir. Quando foi que alguém da CP te deixou na mão? — O mink aguardou o homem encerrar a ligação e sair do que parecia ser um escritório, antes de pular para dentro. Folheou rapidamente os documentos deixados por ele, e sorriu quando viu a foto estampada em um deles. “Te achei.”
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Gar não fazia ideia do que era a Cipher Pol antes de se alistar, mas mesmo assim resolveu se arriscar ao saber que a sua irmã estava naquela organização. Poucas semanas depois da fatídica ligação que mudou a sua vida, ele encontrara uma agência onde oficializou a sua ingressão, na esperança de finalmente surpreender Mika.
—
Sonhando acordado com a irmãzinha de novo, Menino Perdido? — Provocou Koda ao jogá-lo no chão. Por um instante, Gar havia se esquecido de que estava no meio de uma luta, mas a falta de ar e a dor agoniante o trouxeram de volta para a realidade. Mesmo que fosse um treinamento, Koda jamais pegava leve.
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Estou pensando na missão de campo. — Mentiu, levantando-se rapidamente. Assumiu a postura de batalha que Koda havia lhe ensinado, e saltou sobre ele com as garras levantadas; novamente ele sentiu seu corpo ser arremessado contra o solo. Não importava o quanto tentasse ou que fizesse, vencer aquele elefante seria, para sempre, impossível.
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Por mais que seja a sua primeira, não precisa ficar nervoso, sabe? Não é como se fossem te mandar fazer algo absurdamente difícil. — Aconselhou o outro mink, preparando-se para receber uma nova investida de Gar. —
Além do mais, talvez você tenha mais sorte procurando por pistas da Mika na rua do que aqui dentro. Era verdade. Gar havia entendido que a documentação da Cipher Pol era demasiado sigilosa para alguém de nível tão baixo quanto ele, e mesmo após tanto tempo dentro da organização, ele sequer havia encontrado alguém que conhecesse a sua irmã. O felino tentou um ataque por trás, ziguezagueando em volta do oponente, mas a tromba musculosa interceptou o seu soco. Koda o havia instruído no estilo dos minks, mas era inegável a diferença de habilidade entre eles.
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Parece que vou para Sirarossa. Já ouviu falar? — Perguntou, desfazendo as faixas enroladas em suas mãos. Ele estava cansado de servir de saco de pancada para os outros.
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Sim. E só tenho um conselho para você: tente não morrer.
Prólogo 
