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FASES DA PRIMAVERA
Não foi em um dia de primavera que Saori floresceu. Seus espinhos surgiram antes mesmo das pétalas se abrirem, em meio a uma noite fria de inverno.
Ela cresceu no Reino de Ravenwatch, junto ao seu irmão mais velho, Maximus. Ambos nasceram na família Ito, conhecida pelo seu amplo comércio. Mas, apesar de ser um sobrenome influente no meio, não eram bem vistos pelos olhos da realeza local.
Maximus assumia um papel além do fraterno para Saori, cuidando dela e da casa enquanto seus pais cumpriam longas horas de trabalho. Desde pequena ela o idolatrava. Para a menina, talvez seu irmão significasse até mais do que seu pai ou sua mãe.
Quando ainda eram crianças, Maximus prometeu que a protegeria, e honrou sua palavra ano após ano.
Mas não era como se os pais esquecessem de seus filhos. Nos momentos que sobravam da rotina de labuta, a família Ito se reunia. Porém, ao invés de ocasiões de lazer e descontração, treinavam o corpo e a mente de modo laborioso. Foi assim que Saori aprendeu a manusear o chicote, ensinada por sua mãe, enquanto Maximus praticava estilos de luta corpo a corpo com seu pai. No tempo em que estudava as técnicas de um chicoteador, ela observava as artes marciais que Maximus empenhava. E assim memorizou boa parte das técnicas de taekwondo.
Ela nunca questionou os exercícios militares, contanto que pudesse ver as pessoas que ama reunidas já era o bastante. E nesses momentos entendeu a maior peculiaridade que corria em seu sangue. A memória eidética em sua capacidade máxima era proporcionada por um determinado gene, herdado pelos Ito a cada geração. Ou como seus pais apresentaram: a memória perfeita.
Nada era esquecido, seja algo que tenha sido visto ou meramente ouvido.
Porém, para a infinita frustração de Saori, ela descobriu logo cedo que uma bênção também poderia se tornar uma maldição.
Numa certa noite, quando tinha por volta dos seus quatorze anos de idade, seus pais chegaram apressados em casa. Tentaram esconder o desespero, mas seus olhares irrequietos entregaram o sentimento de angústia que se instalava ali. Ainda que Saori e Maximus não estivessem entendendo, mantiveram-se em silêncio, apenas seguindo os passos dos mais velhos.
Dentro de um armário e sob uma pilha de roupas, os irmãos foram colocados. Um beijo na testa dos dois selou a despedida, que não teve tempo para cordialidade. Instantes depois, barulhos começaram a soar alto, eles atravessavam os cômodos da casa, e reverberavam pela fresta da porta entreaberta do móvel. O tilintar de lâminas. O grito dos pais.
O estado de choque envolveu ambos os irmãos, assegurando que não haveria choro por aquele quarto.
Após alguns minutos, que mais pareceram horas, um silêncio inquietante se ergueu. Então uma figura, cuja aparência estava oculta por vestes negras, adentrou o quarto. Mãos manchadas de sangue vasculharam o lugar. A falta de minúcia do disfarçado, acarretada pela pressa em executar sua tarefa, acabou por deixar o armário passar despercebido. Junto a um resmungo, ele saiu.
Maximus ousou se levantar e deixar o esconderijo. Ele segurou Saori pela mão. O gesto compartilhou coragem entre os dois, e os incentivou a desbravar a casa. Passando pelos escombros — vestígios das lutas que houveram por ali —, depararam-se com uma cena perturbadora: seus pais prostrados no chão, sobre a poça do próprio sangue.
Os olhos de Saori se recusaram a testemunhar aquilo, diferente de Maximus que pareceu confrontar o desespero. Ainda que de maneiras distintas, a experiência traumática envenenou os dois.
Ambos permaneceram imóveis. Mas a ação daqueles que abalaram a família Ito ainda não havia acabado.
Enquanto Saori relutantemente tampava seu rosto com as mãos, Maximus quebrou as correntes do medo. Em um ato de bravura, ele puxou sua irmã e a colocou sobre as costas.
Fogo foi ateado. A fumaça começou a circular pela casa. O cheiro tão característico subiu pelas paredes.
Saori estava pela primeira vez desnorteada, mas seu irmão foi o alicerce para que ela, pelo menos naquele momento, conseguisse superar o seu emocional. Ela o agarrou pelos ombros e, engolindo as lágrimas que corriam sobre seu rosto, apontou para onde ele deveria correr.
Longe de casa, os dois andaram pelo reino. Foram ao único lugar onde sabiam que encontrariam abrigo: o castelo de Ravenwatch. Lá foram recebidos um grande amigo de infância, Alexander Lancaster III, herdeiro do reino. Embora a família real não gostasse dos Ito, a amizade genuína dos três sempre prevaleceu.
Sem conseguir conter seus anseios, Maximus estava determinado quando decidiu iniciar sua jornada em busca de respostas, partindo para longe do reino. A princípio, foi contra a vontade de sua irmã, mas com o tempo ela entendeu que ele precisava daquilo, e o deixou livre para trilhar seu propósito.
Saori passou os dias no castelo com um vazio incessante no coração. Ela não queria perder mais ninguém que amava.
Na maior parte do tempo, permanecia sozinha, evitando qualquer tipo de socialização. Encontrou nos livros uma maneira de preencher sua mente, ofuscando as lembranças que eram tão nítidas. Assim a biblioteca se tornou o seu ambiente favorito, lugar onde passava dias e até noites.
Era costume dos serviçais do reino servirem chá em momentos pontuais. Pouco a pouco, Saori foi pegando gosto pela bebida. Até que uma xícara de chá tornou-se indispensável como acompanhamento de sua leitura.
Não só as ficções capturaram a atenção da garota. A leitura revelou conhecimentos fascinantes para Saori. Ela aprendeu sobre a história, as regiões, até sobre a cultura das ilhas que compõem o mundo. Esse interesse se uniu ao desejo latente de reencontrar Maximus. Com os conhecimentos necessários acerca dessas disciplinas, ela poderia ajudá-lo a desvendar as respostas que tanto queria.
No ínterim de sua rotina na biblioteca, acabou conhecendo outros moradores do castelo.
Dentre eles havia Haru, uma garota-coelho, que foi a responsável por trazer um pouco de conforto ao seu coração. A de orelhas rosas e felpudas contou sobre sua raça e sua história de vida, a qual assemelhava-se à de Saori. Ambas perderam pessoas importantes de maneira trágica.
Junto à Haru, conheceu Kaplya, pai adotivo dela. Um mink rabugento, porém com um enorme coração. Ele foi uma peça fundamental para a compreensão de algumas questões. Como membro da guarda nobre, ele soube de informações a respeito dos Ito. A família de Saori não era composta por comerciantes comuns. Seus pais eram donos de lojas no submundo.
A informação chocou Saori. Mas havia sentido, afinal, agora ela conseguia encaixar algumas peças que faltavam em sua história. Porém, ainda havia perguntas sem respostas, que nem mesmo o mink conseguiria responder.
Ela voltou-se às suas pesquisas, indo cada vez mais a fundo nos livros de conhecimentos técnicos, munindo-se com um arcabouço teórico que lhe permitiria investigar e compreender os mais diversos assuntos.
A partir de sua aventura na biblioteca, encontrou o seu ofício. Ou melhor dizendo, a arqueologia resgatou Saori, estendendo a mão para a garota que desejava um dia ser capaz de seguir os passos do irmão.
Outro dos moradores, que Saori não pôde deixar de notar, foi Shinto. Um rapaz mais quieto e reservado. Ela o conheceu enquanto bisbilhotava as seções de religião e história. Não trocaram muitas palavras, apenas olhares, mas sentiu um clima diferente ao lado dele. Um ar enigmático exalava de Shinto.
Foi também na biblioteca que conheceu um rapaz bastante intrigante, John Doe, um servo de Alex recém chegado no castelo. John a encontrou no seu momento de estudo, enquanto bebia seu chá diário. Naquele momento, o garoto aproximou-se portando uma bandeja cheia de biscoitos quentinhos. Saori, apesar da timidez, aceitou os doces, pegando um em formato de coração e outro de gatinho. Estavam deliciosos.
Novas relações à parte, ano após ano, Alex tornou-se para Saori um reflexo de Maximus. Estavam tão próximos naquele convívio, que a amizade parecia transcender os limites sanguíneos. Agora, eles eram como irmãos. E dada a proximidade, ela sabia da severa doença que o afligia. Ela não admitiria perdê-lo também. Haru compartilhava do mesmo sentimento, e não é à toa que ambas se juntaram na mesma aventura: encontrar a cura do príncipe.
Alexander viu em seus súditos e amigos mais próximos confiança para não desistir. A determinação de todos engrandeceu seu ânimo, e o ergueu do leito que o reprimia durante tanto tempo. Ele pôde acreditar que encontraria a cura, e que poderia ser o melhor rei de todos os tempos.
Saori não recuaria. Ela estava junto ao grupo de Alex. O primeiro passo foi num lugar similar ao Reino de Ravenwatch, onde suas cidades eram totalmente brancas e governadas por um jovem rei, a ilha de Flevance.